domingo, 20 de setembro de 2015

O FRIO DO INVERNO


A carruagem parou em meio a rua cheia de pessoas apressadas. O sol estava escondido por entre nuvens e o vento frio de inverno teimava em tocar o rosto de Anabela. A jovem desceu as escadas do carro da carruagem e observou as pessoas ao seu redor.

             - Eu aguardarei seu retorno aqui, minha senhora – disse o cocheiro todo solícito.

A jovem Anabela assentiu com um gesto de cabeça, olhou o céu estampado de cinza e caminhou por entre os pedestres apressados. O chão de terra batida da rua da capital francesa empoeirava seu lindo vestido bege de cetim e o vento frio brincava com seus longos cabelos castanhos cacheados. Em uma tentativa frustrada, ela tentava ajeitar os cachos no chapéu que teimava em cair ao chão. E foi assim que ela conheceu sua alma gêmea.

                - Acho que este chapéu pertence a senhorita – disse o desconhecido.

                Anabela olhou agradecida para o jovem homem que lhe estendia o seu chapéu brincalhão.

                - Muito obrigada, senhor! Este chapéu sempre teima em brincar comigo – disse a jovem corada de vergonha.

                - Então, eu acho que tenho de agradecer ao seu chapéu por me dar a oportunidade de apreciar tão linda dama neste dia frio de inverno.

                Anabela nada respondeu, somente sorriu entre lábios, fitou nos olhos do jovem e mais uma vez, abaixou a cabeça envergonhada.

                - Perdão, senhorita! Meu nome é Lúcio.

                - O meu é Anabela – respondeu a moça um tanto ruborizada.

                - Bela como o próprio nome! Será que posso acompanhar tão bela dama nesta manhã fria de inverno?

                Anabela olhou mais uma vez fundo nos olhos do homem em sua frente. Havia um brilho misterioso em seu olhar, parecia que ela já o conhecia há tempos. Por fim, com um sorriso, a jovem consentiu que Lúcio a acompanhasse pelas ruas da capital francesa.

                Lúcio contou-lhe sua vida, em como viera parar em Paris com sua família de descendência espanhola para se formar em Direito. Anabela olhava-o admirada e percebeu como o jovem de olhos negros brilhantes estava empolgado com a nova era que estava chegando à França.

                - A razão encaminhará o homem à sabedoria e o conduzirá à verdade, Anabela – dizia Lúcio – As luzes de um novo tempo estão chegando, minha linda dama.

                - Mas, acredito ser impossível mudar o mundo que vivemos, Lúcio! O rei nunca deixará de ser rei! A rainha nunca deixará de ter teus súditos e a corte nunca deixará seus benefícios! – refletia Anabela.

             - O iluminismo irá mudar isso, minha querida! Esta nova era nos trará liberdade de expressão e igualdade de direitos.

- Por que estais a me dizer tais coisas, Lúcio? Nestes tempos em que vivemos é proibido falar em revolução. Não temes que eu possa te entregar aos guardas do rei?

O jovem intelectual pegou as delicadas mãos da dama que o acompanhava e levando-as aos lábios, revelou:

- Não sei o porquê, minha querida Anabela, mas eu confio em você! Para mim, teu lindo rosto parece ser conhecido de outras gerações.

Os dias se passaram e durante todas as manhãs, Anabela caminhava ao redor do rio Sena com o jovem advogado de nome Lúcio. Ele lhe contava detalhes de obras proibidas como as de Montesquieu, Rousseau, Voltaire e John Locke.

- É preciso arrancar fora os velhos grilhões da ignorância e da autoridade, Anabela – sempre dizia Lúcio para a jovem – É preciso acabar com a desigualdade criada por estas instituições políticas e também pela sociedade.

- Mas, como acabar com tudo isso, Lúcio? Desde a minha tenra infância vejo pessoas morrendo de fome enquanto a Corte Real realiza caros bailes com o dinheiro dos impostos do povo.

- Por isso, é preciso de novos tempos onde a informação possa quebrar as correntes que prende o homem – mais uma vez os olhos negros de Lúcio brilharam – O homem nasce livre, Anabela, mas em todos os lugares ele está acorrentado. Um homem que se julga o senhor dos outros, continua a ser mais escravo do que eles.

Aquelas frases a jovem senhorita nunca mais iria esquecer e foi naquela manhã cinza de fevereiro do ano de 1789 às margens do rio Sena que Anabela recebeu em seus lábios o beijo ardente daquele homem que aspirava por novos tempos.

As águas do velho rio da capital francesa foi testemunha de muitas juras de amor eterno entre o jovem casal e em muitas manhãs, Anabela acompanhava Lúcio com suas anotações em um velho caderninho com folhas amareladas. Mas, o destino parecia não estar a favor dos amantes e, em uma noite, o advogado procurou sua amada e a entregou em prantos suas anotações.

- Anabela, se algo acontecer comigo, prometa-me que estas páginas chegarão até as mãos de pessoas que estarão dispostas a lutar pelo povo.

- Mas, Lúcio, o que está acontecendo? Por que estais tão preocupado? – perguntou angustiada Anabela.

- Minha linda senhorita, não posso dizer-lhe o que me tira o sono, mas prometa-me que fará o que lhe peço! – implorou o homem de olhos brilhantes.

Com um consentimento com a cabeça, Anabela prometeu para Lúcio que iria seguir suas orientações.

- Anabela, eu nunca senti este amor por alguém como eu sinto por você! Pra sempre irei te amar, minha linda donzela! Partirei por um tempo, mas logo voltarei para seus braços!

E com olhos marejados de lágrimas, os jovens amantes se despediram com um longo beijo que para sempre estaria na memória de Anabela. Mas, logo pela manhã, um corpo inerte no rio Sena chamou a atenção de toda Paris. O jovem advogado de nome Lúcio não mais vivia. A notícia oficial dizia que a morte fora suicídio, mas algumas pessoas confidenciavam entre si que o homem dos olhos brilhantes havia sido assassinado pela guarda real.

Ao saber da notícia, Anabela correu para as margens do velho rio que fora testemunha do seu amor e sobre o corpo frio do seu amado, lágrimas jorraram dos seus olhos. E naquela manhã fria do início do mês de março, ela se lembrou da promessa que não poderia ser quebrada.

O mês de maio chegou e em Paris a Revolução se instalou. O povo francês estava muito descontente com o rei Luís XVI e com os gastos da corte real. Os ideais iluministas foram o estopim para que em julho a fortaleza Bastilha fosse tomada pelo próprio povo, se tornando símbolo da Revolução que acabara de estourar em toda a França. Marceneiros, diaristas, escultores, chapeleiros, alfaiates, operários e artesãos formavam a massa revoltosa que invadiu e destruiu a prisão real da capital francesa. Paris estava “intoxicada com liberdade e entusiasmo”.

E em meio a essa revolta, uma jovem de cabelos castanhos cacheados, caminhava apressada por entre a multidão que gritava palavras de ordem pelas ruas de Paris. Ao adentrar em uma velha casa do quarteirão rodeado por vozes que gritavam, Anabela entrega o velho caderninho de folhas amareladas para o homem alto que estava em sua frente.

- Espero que se debruce sobre as palavras escritas a sangue neste velho caderno. Elas com certeza serão fontes de inspiração para que o povo realmente possa ter liberdade, igualdade e fraternidade.

Ao dizer tais frases, a jovem deixa o recinto com o sentimento de promessa cumprida. Apesar do vazio que sentia, seu coração sabia que as palavras contidas naquelas páginas poderiam contribuir com o sonho de Lúcio de uma vida melhor para aquelas pessoas que tiveram a ousadia de enfrentar um poderio que os massacrava dia e noite. E ao abrir o velho caderninho, o homem alto se surpreendeu com as palavras do advogado assassinado:

“Os homens nascem e devem ser livres e iguais em direitos. Todos devem ter a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão como estes direitos. Nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente. A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo e os limites para essa liberdade devem ser determinados pela lei que deve ser a expressão da vontade de todos. Todos os cidadãos devem ser iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares, empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos. Ninguém deveria ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei que deve proibir senão as ações nocivas à sociedade e, principalmente, ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene. Todo acusado deveria ser considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deveria ser severamente reprimida pela lei. Ninguém deveria ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei. A livre comunicação das ideias e das opiniões deveria ser um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão deveria portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelos abusos desta liberdade nos termos previstos em lei. As pessoas da sociedade deveriam ter o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração. A garantia dos direitos do homem necessita de força pública para que possa ser por fim, concretizada”.

          E no dia 26 de agosto de 1789 em Paris na França, o maior sonho do jovem advogado havia se concretizado e suas palavras por fim, foram ouvidas. Após dez dias reunidos na Assembleia Nacional Francesa e em meio a ferro e a fogo que se instalaram no país, os deputados franceses divulgaram a declaração que iria mudar os rumos de todos os homens e mulheres em todo o mundo: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. 

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