A carruagem
parou em meio a rua cheia de pessoas apressadas. O sol estava escondido por
entre nuvens e o vento frio de inverno teimava em tocar o rosto de Anabela. A
jovem desceu as escadas do carro da carruagem e observou as pessoas ao seu
redor.
-
Eu aguardarei seu retorno aqui, minha senhora – disse o cocheiro todo solícito.
A jovem Anabela
assentiu com um gesto de cabeça, olhou o céu estampado de cinza e caminhou por
entre os pedestres apressados. O chão de terra batida da rua da capital
francesa empoeirava seu lindo vestido bege de cetim e o vento frio brincava com
seus longos cabelos castanhos cacheados. Em uma tentativa frustrada, ela tentava
ajeitar os cachos no chapéu que teimava em cair ao chão. E foi assim que ela conheceu
sua alma gêmea.
-
Acho que este chapéu pertence a senhorita – disse o desconhecido.
Anabela
olhou agradecida para o jovem homem que lhe estendia o seu chapéu brincalhão.
-
Muito obrigada, senhor! Este chapéu sempre teima em brincar comigo – disse a
jovem corada de vergonha.
-
Então, eu acho que tenho de agradecer ao seu chapéu por me dar a oportunidade
de apreciar tão linda dama neste dia frio de inverno.
Anabela
nada respondeu, somente sorriu entre lábios, fitou nos olhos do jovem e mais
uma vez, abaixou a cabeça envergonhada.
-
Perdão, senhorita! Meu nome é Lúcio.
-
O meu é Anabela – respondeu a moça um tanto ruborizada.
-
Bela como o próprio nome! Será que posso acompanhar tão bela dama nesta manhã
fria de inverno?
Anabela
olhou mais uma vez fundo nos olhos do homem em sua frente. Havia um brilho
misterioso em seu olhar, parecia que ela já o conhecia há tempos. Por fim, com
um sorriso, a jovem consentiu que Lúcio a acompanhasse pelas ruas da capital
francesa.
Lúcio
contou-lhe sua vida, em como viera parar em Paris com sua família de
descendência espanhola para se formar em Direito. Anabela olhava-o admirada e
percebeu como o jovem de olhos negros brilhantes estava empolgado com a nova
era que estava chegando à França.
-
A razão encaminhará o homem à sabedoria e o conduzirá à verdade, Anabela –
dizia Lúcio – As luzes de um novo tempo estão chegando, minha linda dama.
-
Mas, acredito ser impossível mudar o mundo que vivemos, Lúcio! O rei nunca
deixará de ser rei! A rainha nunca deixará de ter teus súditos e a corte nunca
deixará seus benefícios! – refletia Anabela.
-
O iluminismo irá mudar isso, minha querida! Esta nova era nos trará liberdade
de expressão e igualdade de direitos.
- Por que estais
a me dizer tais coisas, Lúcio? Nestes tempos em que vivemos é proibido falar em
revolução. Não temes que eu possa te entregar aos guardas do rei?
O jovem
intelectual pegou as delicadas mãos da dama que o acompanhava e levando-as aos
lábios, revelou:
- Não sei o
porquê, minha querida Anabela, mas eu confio em você! Para mim, teu lindo rosto
parece ser conhecido de outras gerações.
Os dias se
passaram e durante todas as manhãs, Anabela caminhava ao redor do rio Sena com
o jovem advogado de nome Lúcio. Ele lhe contava detalhes de obras proibidas como
as de Montesquieu, Rousseau, Voltaire e John Locke.
- É preciso
arrancar fora os velhos grilhões da ignorância e da autoridade, Anabela –
sempre dizia Lúcio para a jovem – É preciso acabar com a desigualdade criada
por estas instituições políticas e também pela sociedade.
- Mas, como
acabar com tudo isso, Lúcio? Desde a minha tenra infância vejo pessoas morrendo
de fome enquanto a Corte Real realiza caros bailes com o dinheiro dos impostos
do povo.
- Por isso, é
preciso de novos tempos onde a informação possa quebrar as correntes que prende
o homem – mais uma vez os olhos negros de Lúcio brilharam – O homem nasce
livre, Anabela, mas em todos os lugares ele está acorrentado. Um homem que se
julga o senhor dos outros, continua a ser mais escravo do que eles.
Aquelas frases
a jovem senhorita nunca mais iria esquecer e foi naquela manhã cinza de
fevereiro do ano de 1789 às margens do rio Sena que Anabela recebeu em seus
lábios o beijo ardente daquele homem que aspirava por novos tempos.
As águas do
velho rio da capital francesa foi testemunha de muitas juras de amor eterno
entre o jovem casal e em muitas manhãs, Anabela acompanhava Lúcio com suas
anotações em um velho caderninho com folhas amareladas. Mas, o destino parecia
não estar a favor dos amantes e, em uma noite, o advogado procurou sua amada e
a entregou em prantos suas anotações.
- Anabela, se
algo acontecer comigo, prometa-me que estas páginas chegarão até as mãos de
pessoas que estarão dispostas a lutar pelo povo.
- Mas, Lúcio,
o que está acontecendo? Por que estais tão preocupado? – perguntou angustiada
Anabela.
- Minha linda
senhorita, não posso dizer-lhe o que me tira o sono, mas prometa-me que fará o
que lhe peço! – implorou o homem de olhos brilhantes.
Com um
consentimento com a cabeça, Anabela prometeu para Lúcio que iria seguir suas
orientações.
- Anabela, eu
nunca senti este amor por alguém como eu sinto por você! Pra sempre irei te
amar, minha linda donzela! Partirei por um tempo, mas logo voltarei para seus
braços!
E com olhos
marejados de lágrimas, os jovens amantes se despediram com um longo beijo que
para sempre estaria na memória de Anabela. Mas, logo pela manhã, um corpo
inerte no rio Sena chamou a atenção de toda Paris. O jovem advogado de nome
Lúcio não mais vivia. A notícia oficial dizia que a morte fora suicídio, mas
algumas pessoas confidenciavam entre si que o homem dos olhos brilhantes havia
sido assassinado pela guarda real.
Ao saber da
notícia, Anabela correu para as margens do velho rio que fora testemunha do seu
amor e sobre o corpo frio do seu amado, lágrimas jorraram dos seus olhos. E
naquela manhã fria do início do mês de março, ela se lembrou da promessa que
não poderia ser quebrada.
O mês de maio
chegou e em Paris a Revolução se instalou. O povo francês estava muito
descontente com o rei Luís XVI e com os gastos da corte real. Os ideais
iluministas foram o estopim para que em julho a fortaleza Bastilha fosse tomada
pelo próprio povo, se tornando símbolo da Revolução que acabara de estourar em
toda a França. Marceneiros, diaristas, escultores, chapeleiros, alfaiates,
operários e artesãos formavam a massa revoltosa que invadiu e destruiu a prisão
real da capital francesa. Paris estava “intoxicada com liberdade e entusiasmo”.
E em meio a
essa revolta, uma jovem de cabelos castanhos cacheados, caminhava apressada por
entre a multidão que gritava palavras de ordem pelas ruas de Paris. Ao adentrar
em uma velha casa do quarteirão rodeado por vozes que gritavam, Anabela entrega
o velho caderninho de folhas amareladas para o homem alto que estava em sua
frente.
- Espero que
se debruce sobre as palavras escritas a sangue neste velho caderno. Elas com
certeza serão fontes de inspiração para que o povo realmente possa ter
liberdade, igualdade e fraternidade.
Ao dizer tais
frases, a jovem deixa o recinto com o sentimento de promessa cumprida. Apesar
do vazio que sentia, seu coração sabia que as palavras contidas naquelas
páginas poderiam contribuir com o sonho de Lúcio de uma vida melhor para
aquelas pessoas que tiveram a ousadia de enfrentar um poderio que os massacrava
dia e noite. E ao abrir o velho caderninho, o homem alto se surpreendeu com as
palavras do advogado assassinado:
“Os homens nascem e devem ser livres e
iguais em direitos. Todos devem ter a liberdade, a propriedade, a segurança e a
resistência à opressão como estes direitos. Nenhum indivíduo pode exercer
autoridade que dela não emane expressamente. A liberdade consiste em poder
fazer tudo que não prejudique o próximo e os limites para essa liberdade devem
ser determinados pela lei que deve ser a expressão da vontade de todos. Todos
os cidadãos devem ser iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as
dignidades, lugares, empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra
distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos. Ninguém deveria
ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei que deve
proibir senão as ações nocivas à sociedade e, principalmente, ninguém pode ser
constrangido a fazer o que ela não ordene. Todo acusado deveria ser considerado
inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o
rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deveria ser severamente reprimida
pela lei. Ninguém deveria ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões
religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública
estabelecida pela lei. A livre comunicação das ideias e das opiniões deveria
ser um dos mais preciosos direitos do homem. Todo cidadão deveria portanto,
falar, escrever, imprimir livremente, respondendo pelos abusos desta liberdade
nos termos previstos em lei. As pessoas da sociedade deveriam ter o direito de pedir
contas a todo agente público pela sua administração. A garantia dos direitos do
homem necessita de força pública para que possa ser por fim, concretizada”.
E no dia 26 de agosto de 1789 em Paris na França,
o maior sonho do jovem advogado havia se concretizado e suas palavras por fim,
foram ouvidas. Após dez dias reunidos na Assembleia Nacional Francesa e em meio
a ferro e a fogo que se instalaram no país, os deputados franceses divulgaram a
declaração que iria mudar os rumos de todos os homens e mulheres em todo o
mundo: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.