Ele andou uns 100 metros de casa,
de repente, ouve um barulho e sente uma dor. Imediatamente, leva uma das mãos
até as costas. A mão volta à sua visão cheia de sangue. Era um tiro... Olha
para trás para ver o traiçoeiro que atirou, mas seus olhos não conseguem
distinguir quem é. Sua visão vai escurecendo e uma sombra apontando uma arma é
a última coisa que consegue ver.
“Acorda,
vagabundo” é o grito que o desperta. “Cadê meu dinheiro? Cadê meu pó (cocaína)
e meu verdim (maconha)?” a voz continua a berrar. Ele não consegue pensar, só
sente o corpo frio e o sangue esguichando. “Vou te matar, carái”, a voz parecia
conhecida. Quando consegue abrir os olhos, vê um 38 apontado para a sua cabeça.
Os lábios tremem e um sussurro pode-se ouvir “Eu precisei do dinheiro”. Mais um
tiro e mais uma dor. Dessa vez foi no joelho. Gritos são ouvidos e a voz
continua a berrar “Você torrou meu dinheiro? Você entrou numa sujeira, carái!
Eu quero meu dinheiro!”
O
seu rosto estava ensopado de suor e de lágrimas. Pela primeira vez em na vida,
ele chorou. E ele já havia feito muita gente chorar... Como um flashback, viu
sua vida passar pelos seus olhos. Lembrou-se da namorada da esquina que lhe deu
sua primeira e única filha. Lembrou-se de quando ela foi embora com outro,
deixando a menina para ele cuidar. Foi a maior “crocodilagem” (traição) que ele
enfrentou. Sem pensar duas vezes, ele entrou no mundo das
drogas. Virou aviãozinho e drogado. Sua mãe chorou quando o viu noiado pela
primeira vez e também chorou quando o viu pela última vez. Ele xingava “Velha
safada, quem mandou abrir as pernas pro
filho da puta do meu pai. Tá aqui o resultado!”. Lembrou-se do rostinho
da sua filha, de toda infância em que ela não teve um pai. Lembrou-se do dia em
que ele fumou umas pedras, “chapô o cocô”(ficou doido) e quase a matou com a
faca achando que era um monstro mitológico. Ele ficou “moscando”(vacilando) uma
“pá” de vezes, deu “pinoti” (saiu correndo) em muitos “coxinhas” (policiais)
porque se metia em muita “treta” (confusão). Ele roubou muitas vezes o salário
mínimo de aposentadoria da mãe para ficar chapado. Viu em sua memória o dia em
que se escondeu dos capachos do traficante da quebrada e para pagar a dívida
das pedras, eles levaram os eletrodomésticos da sua mãe. E ele só queria ter um
caminho curto ao dinheiro e ficar chapadão. Precisa alimentar aquela sede de
drogas, de êxtase, da ilusão que vivia quando drogado. O barato é legal ao
menos na cabeça de um doente. Ele devia ao traficante do gueto e sentia que
agora era o fim do caminho...
“Acorda,
vacilão” “Tá me passando a fita forte (roubando), carái”, a voz gritava e mais
um som foi ouvido. Mais uma dor foi sentida. Uma dor quente rasgando a pele.
Ele podia sentir o pedaço de chumbo endurecido com antimônio e envolvido por
uma liga de cobre e zinco entrar nos seus órgãos. Era a bala da arma. Não
conseguia gritar, já estava sem força para reagir.
“Vou
mandar você degolado pra puta da tua mãe” foi a última coisa que conseguiu
ouvir. E a última coisa que viu foi o 38 apontado para sua cabeça. Um disparo,
um segundo, um momento para se arrepender de tudo que não devia ter feito. No
caminho sem volta, ele era somente mais um que se perdeu nas ilusões
transitórias do vício que vai corroendo a vida, as famílias e os sonhos aos
poucos. Já era tarde para se arrepender... Assim, a mãe chora o filho morto, a
filha vê o seu corpo, perfurado, degolado, já sem vida, ensanguentado...